O beijo da lua
A lua posta lá no alto exibia sua magnitude e esplendor
roubados de outro astro. Eu, aqui, no meu canto, contemplava o que era cópia e me
deixava inebriar pela solidão amarela e larga que brilhava pela janela do meu
quarto.
Achei que não fosse doer tanto. Mas doeu. Achei que eram
memórias, mas eram feridas encobertas na pele e que logo se expuseram deixando
o pus amarelo escorrer e a vermelhidão queimar me fazendo lembrar o porquê de
tantas estorelhas amorosas nunca terem dado certo. O de repente, contando com a
misericórdia de Jesuzinho um dia me mandar uma pessoa divino-maravilho ainda
não se sucedeu, e me restou somente chafurdar-me nas minhas lembranças pobres
que me atormentavam tanto quanto o sorriso falso de algumas pessoas.
Aqueles olhos castanhos foderam-me. Aqueles olhos malditos
me foderam para sempre. Repeti. E repeti, tentando tomar consciência do
desatino de acreditar que se ele me aparecesse hoje, de novo, mesmo depois de
tantas idas e voltas, eu o aceitaria. Aceitaria porque o amor que a gente tem é
o que a gente faz por merecer.
Que Maria não me escute pensar isso, ela me odiaria e teria
ainda mais pena de mim. Ela diz que não tenho amor próprio, que só penso nele,
e que por causa dele dei a ficar de bebedeira alguns fins de semana. É que
finais de semana me quebram as pernas, os braços e a cara – o coração tá
quebrado faz tempo e sem pretensão de conserto – era nos finais de semana que
saíamos a visitar restaurantes, teatros e amigos. Aqueles amargurados que nunca
suportaram a nossa felicidade. Estou sendo ranzinza demais, dois ou três queriam
nos ver juntos e formar uma família, ter fedelhos correndo e sujando a casa.
Até fizemos planos, prometemos que nossa história seria contada e passada de
geração em geração, mas com dores e obstáculos reais, sem essa história fajuta
de príncipes, cavalos, princesas e vestidos bonitos.
A lua continuava exibida. E eu, nadando e saboreando meu
próprio caos. Pensei: Todos merecem uma segunda chance. Mas já tinha dado
tantas! Tantas, meu Deus! De todas as vezes que ele terminou com as namoradas e
voltou pra mim. De todas as vezes que me fez de atalho para se recompor e sair
distribuindo o amor que eu criei, o amor que ensinei e que só foi dado a outras. Que provas mais havia ele de querer? Não eram
amores como o meu os mais bonitos? O mais verdadeiro? Não bastava?
Não, ele queria mais. Eu queria migalha. A ficha começou a
cair. Senti o tilintar do metal no meu estômago. Nunca fui cachorra, nem pomba,
nem o diabo que fosse para receber e, pior, me contentar com migalha. Maria
estava certa, e que ela não saiba – ficaria uma insuportável dona da verdade.
Cansei. E com o cansaço e embalado pelo falso brilho noturno
da lua gigante e amarela que fazia decoração na minha janela, veio a decisão: tô abrindo mão porque o coração já abri demais. E abri tantas vezes e remendei tantas
mais que me doeu. Ele vinha com aqueles olhos de cigano dissimulado, jurando
trovas e versos de outros amores e que jurei serem meus, e me dava ânimo: rearrumava
minha vida, trocava os tapetes da porta da frente, perfumava a casa e dizia:
senta, fica à vontade. E de tão à vontade, você se recompunha, me ajudava a
costurar o meu coração mole, bobo e sedento só para ter a sensação de
rasgar-lhe as costuras, cortar-lhe em tiras só para ver meu desengano, só para saborear minha tristeza absoluta em reconstruir tudo, só
para ser dono da sensação de ter um coração entregue em suas mãos.
Pois bem, sobrevivi. Meu coração de boneca já não é mais de
pano. Pois bem, decidi: troquei o meu coração numa feira: soube que era usado,
bem maltratado. Virou um coração cínico, um coração de todos e de ninguém. Assim
como a lua que ostentava o brilho - e dava razões para se beber conhaque, se
afogar na mágoa de amores doentios e dava força para seguir em frente - ela era
de todos, mas não era de ninguém. Eu era a lua, e no seu beijo, ascendi.