Hoje não
Acordou mais tarde que o habitual e a primeira coisa que lhe ocorrera no dia que mal começara foi a sensação de culpa. A segunda coisa que lhe ocorreu foi pedir a Deus para que o dia fosse bom. Estava atrasada, mas de algum modo, não tinha tanta pressa. Fez o caminho que sempre fazia todas as manhãs: no alto, o sol brilhava anunciando um dia espetacular e os ramos das árvores se deixavam sacudir pelo vento frio que vinha do sul. O dia estava com mais cor, todos aqueles elementos formavam um quadro límpido à sua frente.
-Tá tudo bem. Ela dizia para si mesma e ria de algum modo satisfeita, embora achasse que as coisas não andassem, assim, tão boas.
Tudo estava mudando, dava pra sentir. E não havia nada que pudesse ser feito, havia? Sempre há.
Ficou presa no próprio dilema. Talvez ela não se tenha feito suficientemente presente para que ele a procurasse ou talvez estivesse mesmo tudo bem e não havia nada com o que se preocupar. Diziam que ela precisava parar de tomar conta do mundo. E precisava mesmo, anda quase esquecida de si mesma, mas não é que ela não tente – ela até tenta, mas não consegue. E além do mais ela se sentia pior só de achar que estava sendo negligente com alguém ou com seus planos.
Olhou o relógio. Dez minutos atrasada. Apressou o passo, mas de súbito, parou. De longe, pude ver seus músculos contraírem, visivelmente em crise. Em sua mente, travava-se um duelo: a culpa crescente por seu atraso e todas as responsabilidades que tinha assumido e que deveria cumprir versus deixar de lado. Chegou a dar dois passos, miúdos, antes de cerrar o punho,dar meia volta e marchar decidida a qualquer lugar que não fosse o seu destino original.
A uns 10 metros, estava o parque: o lugar luzia e brilhava e de onde estava, não viu melhor opção para se dirigir.
Não sabia o que fazer, nunca tinha deixado o mundo de lado, então ficou sentadinha no banco embaixo de uma árvore que ela, nem eu, sabíamos de que era, mas tinha flores.
Era de uma dose cômica vê-la lá olhando o tempo, parecia deslocada e até, em certo ponto, desolada.
O celular bipou e o chamado a tirou de seu limbo pessoal.
Cadê você?? Você não vem? Ainda dá tempo de vir!
Ela encarou a mensagem, conferiu a hora, estava mesmo atrasada. Respirou fundo e começou a digitar a resposta:
Hoje não.
Eu podia ver e posso falar, aquilo a consumia. Ela mesmo desacreditava o que fazia: como era possível? Tanta coisa para fazer, tanta coisa que dependia dela, tanta coisa que não dependia dela, mas ela metia o bedelho porque queria ter certeza de que as coisas saíram conforme ela planejava. Sentiu o estômago comprimir. Baixou a cabeça, sentiu uma vontade incontrolável de chorar e antes que as lágrimas viessem à tona, colocou as mãos no rosto – os dedos apertando os olhos, a garganta ardendo, ela soluçava silenciosamente.
Um senhor que estava ali caminhando, parou ao vê-la.
-Licença. A senhorita está bem?
Comovida por chamá-la tão educadamente, e ainda por cima, de senhorita – porque ela gosta dessas coisas que soam antigas-, ela deixou escapar um sorriso.
-Estou –Disse com a voz rouca, o que precisou repetir para que a voz saísse mais clara e mais confiante – Estou.
-Tem certeza?
-Sim. Tenho. Estou bem, não há porque se preocupar.
-É que não custa nada perguntar. – Disse o velho homem gentilmente.
-Obrigada.
Ele seguiu a caminhada, ela seguiu sentada, pensando. Tirou o celular da bolsa, ficou segurando o aparelho, ponderando. Não custava nada perguntar, custava? E daí, se ele achasse que ela estava sendo inconviniente? E daí se ele achasse que ela era boba? Ele era amigo dela mesmo, já devia saber.
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Oi. Eu de novo... (como se não soubesse...) Só queria ter certeza de que você está bem. Espero que esteja. Sinto sua falta.
Envi.. Cancelar à Mensagem salva em rascunhos.
Não, ela não enviou, nem iria enviar. Ela sentia falta dele e estava preocupada, mas era só isso. Não achou que fosse um motivo suficientemente bom para enviar. Além do que, naquele dia, ela havia decidido uma coisa: seria ela e só nela que ela pensaria e gastaria seu tempo. Por isso foi ao parque, ver as crianças brincando, correndo e caindo na grama verde. Porque naquele dia, ela estava atrasada, assumiu um compromisso maior do que todas as suas responsabilidades cotidianas, assumiu um compromisso com ela mesma. “Quando ele sentir minha falta, se ele sentir, eu vou estar aqui, como sempre estive. Vou deixar a vida me levar, fazer seus traçados e seguir por eles. Vou deixar de lado, vou sim. Vou cuidar de mim, vou cuidar bem de mim.” Ela pensava enquanto caminhava e sentia o vento fresco soprar os cabelos.
Ela sabia que ia ser diferente quando saiu de casa naquela manhã, dava pra ver no vento, no jeito que os galhos das árvores balançavam.
Olhou mais uma vez o relógio – estava atrasada, mas hoje... ah, hoje não.
Ai, adorei mto bom, você leva jeito =D
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