Vai passar...

domingo, maio 08, 2011 3 Comments

Aos olhos de uma pessoa que não tem a sensibilidade, ela era somente mais uma menina. Uma entre tantas mil. Nada de especial. Quem a olhava, veria uma menina que acabara de se tornar mulher, nos auge dos vinte e dois anos, cabelos escuros, sorriso esplendoroso e olhos, ..., olhos que até hoje são para mim uma incógnita. Nunca os consegui desvendar, se queres que seja sincero. Mas, ainda assim, eles me hipnotizaram. E não foi pela vontade de saber os segredos que carrega, fui simplesmente cativado pela melancolia doce e atraente que eles transmitem. De qualquer forma, eu precisava me apressar para fitá-los uma última vez, queria ser sua última visão.
Enquanto eu dirigia, cortando entre ruas que me fizessem chegar mais rápido, refletia como tudo tinha acontecido.
Amei-a, desde o primeiro instante que a percebi. Porque como disse, aos desatentos e sem sensibilidade, gastava-se tempo até ela ser notada. Mas, uma vez que fora, posso dizer: era como se ela irradiasse felicidade, serenidade, esperança. Era isso, ela irradiava amor.  Ela não era normal, e ela gostava disso. Como se não se encaixar nos paradigmas fosse uma aventura.  Ela era destemida, e mesmo quando estava com medo dizia para si mesma: “vai passar.”  Antes que você pense que ela perfeita, apresso-me em dizer que ela tinha seus defeitos. Era teimosa, e mesmo prevendo que algo fosse dar errado, ela queria errar. Ela era impulsiva, nunca pensava demais antes de fazer qualquer coisa ou falar. A sinceridade dela era ácida, embora ninguém que realmente a conhecesse ligasse para as verdades servidas tão inapropriadamente. Não era por mal, ela tinha um coração puro. E seus olhos, apesar da melancolia, demonstravam essa pureza tão inconsistente para os dias atuais.
Aprendi muito enquanto pude desfrutar de sua companhia. E foi em seu pior momento que mais aprendi. Aos vinte e um anos, descobrimos que ela estava com câncer. Um episódio que eu gostaria de esquecer. Mas temo que levarei essa memória para meu túmulo. Estávamos sentados, conversando, ela me falando das ironias da vida. Rindo. Mal sabíamos que ironia maior estava prestes a acontecer.  Ela começou a me encarar, e disse: “quer saber? Eu poderia morrer hoje, porque eu morreria feliz.” Reclamei com ela por estar dizendo aquilo. Respondi que não poderia, não saberia, viver sem ela. Ela riu de novo, deitou no meu colo e disse: “A gente sempre aprende. A vida é grande demais para negá-la. A gente sempre aprende.” 
Dois dias depois, ela estava sendo socorrida. Só soube quando ela já estava no hospital. Entrei no quarto, ela estava lá, deitada, com uma carinha triste, cansada. Segurei a mão dela, fazendo um esforço sobrenatural para não começar a chorar ali mesmo. Ela apertou minha mão e disse: “vai passar...” Eu não sabia se ela falava aquilo tentando me acalmar ou tentando convencer a si mesma de que era passageiro.
Foi um ano intenso. Vi minha menina, perder os cabelos, a força, a vitalidade. Embora ela fizesse questão de não demonstrar fraqueza. Eu, ao lado dela, era só mais um jovem rapaz, descobrindo a vida na morte.  Naquele tempo, minha fé, se é que possuía alguma, ficou abalada. Não conseguia entender como um Deus perfeitamente bom pudesse permitir que uma vida tão cheia de graça se esvaísse daquele  modo. Era tudo tão complexo.  Eu carregava uma raiva descomunal dentro de mim, sempre silenciada pelo medo de causar mais danos.
Por um tempo, achamos que ela ficaria curada. Mas foi só uma melhora, o que deu a ela tempo de sair do hospital, ver os amigos, fazer pequenas atividades. Quando ela teve que voltar ao hospital, agora mais frágil que nunca, explodi em raiva. Sentia como se Deus estivesse brincando não só comigo, mas com todas as pessoas que se importavam com ela.  Em um tarde, ela pediu que sua mãe ligasse para que fosse lá, vê-la, ela queria conversar comigo.  Fui. Chegando lá, parei na porta do quarto, fiquei olhando-a quieto, no meu canto.  Aproximei-me devagar, puxei a cadeira para perto da cama e sentei. Fiquei ali, olhando ela dormir, tão calma. Fiquei pensando no futuro que era tirado de nós, nos sonhos que jamais se cumpririam, nas palavras que um dia foram ditas, e, naquele instante, pareciam tão sem sentido, bizarras. Chorei.  Eu não queria perdê-la. Por mais que eu não soubesse se estaríamos  juntos se ela estivesse saudável, se chegaríamos a nos casar ou se eu, de repente, morresse de desastre e não houvesse tempo para despedidas.
-Eu também tenho medo. Ela falou com uma voz fraquinha, rouca.
-Desculpe, não queria acordar você.
-Tá tudo bem...  Ela deu um longo suspiro, segurou minha mão.  -É engraçado. – Ela começou – você tá com tanta raiva de Deus e nem se deu conta do que aconteceu dentro de você.
-O que você quer dizer?
-O que eu quero dizer é que você mudou. Quero dizer, não é que eu tenha achado fantástico adoecer e ver decretada a minha sentença de morte. Mas quando olho ao redor, vejo as coisas de outro modo. Deus me deu a chance de viver diferente, de me conhecer, ter a plena consciência de quem sou. Ao invés de achar que eu sou uma injustiçada, prefiro viver o tempo que me resta sabendo que posso aprender mais, posso ser lição para os que estão ao meu redor. Não é questão de conformismo, entenda...  Certas mudanças que sofremos, valem muito mais a pena do que qualquer outra coisa.
-Mas...
-Você sabe disso... eu sei que sim. Você só não quer que eu vá porque você me ama, mas até no amor há uma hora de rendição.
Eu chorei ainda mais. Era incrível ver como em nenhum momento ela estivera zangada por causa da doença ou rude com quem quer que fosse.  Deitei minha cabeça na barriga dela.
-Eu tenho medo às vezes, mas Deus sempre está comigo. Você precisa entender isso.  Vai chegar a hora que você precisará deixar o egoísmo de lado, o rancor, o orgulho para que Deus possa cuidar de você.  Você precisa deixar a raiva de lado, assim você começará a entender as coisas. –Ela dizia passando as mãos em meus cabelos. – Eu amo você. Amo mesmo. 
Naquele dia, ela decidiu que seria muito fúnebre passar o restante de seu tempo dentro de um quarto de hospital.
-Já que eu vou morrer mesmo, que seja num lugar que eu goste mais. –Dizia rindo. Naquela mesma noite, pedi que a mãe dela que me deixasse levá-la a um jantar. Só eu e ela. Eu sabia que não tínhamos muito tempo, e seguindo seu conselho queria ver as coisas de outro modo.
Achei, por fim, que seria melhor fazer um jantarzinho em casa. Fiz fondue de queijo que ela tanto gostava, comprei um vinho, decorei a sala de jantar com velas – umas três velas somente, nem eu nem ela gostávamos muito de velas – e o restante da iluminação ficou por conta da modernidade, para dar aquele ar aconchegante. Ela estava linda, vestia um vestido verde, uma faixa cobrindo a cabeça carequinha, um olhar tão meigo e um sorriso que emanava aquela alegria infantil.
Comemos, bebemos um pouco de vinho e pedi uma última dança. Ela disse que sim, começamos a dançar ao som de ‘dream’ na voz inconfundível de Michael Bublé. Era o que nos restava sonhar apesar de tudo que estávamos vivendo. Pode parecer estranho, mas éramos um casal jovem com gostos requintados.  Não durou muito tempo, ela em pé, dançando um pouco, o corpo colado ao meu, até ela pedir para sentar. Estava muito cansada.  Deitamos no sofá, apenas curtindo a companhia e o silêncio. Ali tive a certeza que, de fato, eu a amava. Naquele silêncio, diante de nenhuma perspectiva no futuro, porque este não haveria. Mas eu a amava. E daquela vez, percebi quão abençoado era por poder estar ali.
No outro dia ela foi internada às pressas. E lá estava eu tentando encurtar o caminho para chegar o mais rápido possível para vê-la.
Estava assustado, mas me assustava ainda mais a possibilidade de seus olhos cheios de segredos não me verem em seu último olhar.  Meu pensamento era: “Deus, por favor...” Era mais uma pequena oração, uma oração de um coração desesperado.
Cheguei a tempo, o que lembrei de agradecer a Deus depois. Entrei no seu quarto, já amontoado de gente, alguns choravam, outros pareciam perdidos, ela estava lá cansada. Cheguei perto dela e sorri. Ela sorriu de volta, sussurrou que me amava e deu-me aquele último olhar “vai passar...”. Apertou minha mão, fechou os olhos e dormiu.  Acho que ela sabia do buraco que instantaneamente se abriria no meu peito, da falta de ar e a sensação de estar tudo acabado. Era isso. Estava acabado. Fiquei ali, sem soltar a mão dela, desacreditando na morte, na vida.
Hoje, completam-se seis anos de sua partida. Ela estava certa quando dizia que ia passar. A dor passou, as memórias ficaram, a saudade, mas não há dor. Ela estava certa, a dor passa.

Emma

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

3 comentários:

  1. LInda Postagem, adorei!

    Sempre venho aqui e adoro esse espaço,
    é mto bacana,
    parabéns!!

    http://redutonegativo.blogspot.com

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  2. adorei o post :)
    sempre estou por aqui..beijinhos

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  3. Oi Maggie,
    Obrigada pela passadinha no blog!
    E eu que fico feliz de ter uma futura colega como você!
    (Já me empoguei para trocarmos figurinhas...rss)
    bjos
    Vou te acompanhar sempre!

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